canhestro

Arredada do sono pela madrugada, deixava-se debruçada sobre o seu corpo despojado de energia e roupas, observando o respirar tão ténue, quase ausente o movimento de subida e descida do tronco.
Tocou-lhe ao de leve no sobrolho, roçando o bordo rosado da sutura de cinco pontos.
Does it hurt, ponto de interrogação. Sussurrou por não o saber acordado, achando amargas e demasiadas as palavras ditas em estrangeiro.
Não. Respondeu-lhe, beijando afeiçoado a polpa dos seus dedos.

Naquela noite temera por ele, no meio da confusão que se instalou no szimpla kert, saíram do bar com destinos opostos. Bálint agarrara-a instintivamente pela mão, e só veio a saber muito mais tarde que o Maltês estava bem, cinco pontos alinhavados acima do supracílio.
Bálint sempre tivera um sentimento de pouca consistência por ela, um fraquinho, não correspondido nas inúmeras tentativas, decidiu que era tempo de partir. Regressara nesse dia a Budapeste depois de uma longa estadia em Zagreb, trazia na bagagem saudades e presentes, tinham tanto para falar que por momentos se esquecera do novo amigo que não falava húngaro, ali sentado ao seu lado.
Mas o Maltês não se sentia intimidado, muito pelo contrário, os ciúmes de Bálint deixavam-no vaidoso, fanfarrão, e contra a sua natureza, acariciava-a em público, tocando-a no fundo das costas, subindo lateralmente pelo tronco rasando a ponta dos dedos no seu peito, acrescentando em várias línguas, indecências ao ouvido.
Stop, ponto de exclamação, disse-lhe tentando um ar sério, não conseguindo reprimir um sorriso. Beijou-a satisfeito no arco de cupido escarlate e decidido em pedir mais uma rodada, caminhou para o balcão à procura de trocos perdidos nos bolsos.

Mais valia que tivesse ficado sossegado, sentado ali ao lado, morrendo à sede mas ancorado pelos seus divinos lábios. Quando chegou ao balcão, encontrou o troco certo, e certos também os problemas. É que nem os dotes de cigano o vão livrar deste destino, e para grande gáudio de Bálint, aquele seria o último beijo da noite.
Na mesa, só Jochen se apercebeu do que estava prestes a acontecer, um matulão com a camisola do Leverkusen bebera demais e impedia o regresso do Maltês à mesa, provocando-o com qualquer coisa na sua língua de cobra manhosa. Vou ser muito pouco útil nesta parte da narrativa, porque o que foi dito entre o boche e o Maltês permanece um mistério. É possível que um deles tenha dito qualquer coisa desdenhosa sobre os polacos, e o outro sem pejo na língua, tenha faltado ao respeito à mãe ou namorada do outro interveniente… O alemão já cuspia as suas declinações e flexões, rot vor Wut parecia um vulcão prestes a libertar a sua fúria, um Krakatoa que se conseguia ouvir a cinco mil quilómetros de distância.
Santinho, ponto de exclamação. Retribuía o Maltês mantendo o seu ar calmo e sereno, de quem não se agita nem pelo vento, segurando firme na mão direita, a fresca, a bela, a mais preciosa cerveja! O boche sem meias medidas, aturdido com o insulto, partia para a violência, expelia saliva descontrolada pela boca, e sem pensar na desgraça, empurrou o Maltês contra o balcão.

Respingado de cerveja perdendo quase um terço, o sangue começava a ferver na guelra, e sem largar o copo, puxava um gancho pela esquerda. Not the left, alguém jurou ouvir na mesa, ou então foi nie w lewo, que é mais ou menos o mesmo em polaco. A esquerda não, ponto de exclamação, implorava Jochen, sabendo que o Maltês não poupava a esquerda, socando em cheio na bochecha do boche obstinado. E lá voava um alemão em câmara lenta, em low cost aterrava pouco depois pelo chão. Mas estava descuidado o Maltês, embriagado de paixão e algum álcool, bebericou vitorioso na cerveja, ou do que dela restava, e sem dar conta do que ai vinha, foi atingido na cabeça, abrindo-se um lanho onde não caberia o juízo, por muito pequeno que fosse!


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