bolacha

As ruas estavam desertas no domingo de manhã, cobertas por uma fina camada de quietação. Sem pressa o carro rolava lento e silencioso pelas vísceras da cidade. O Ribeiro no lugar da frente, concentrava a atenção nas aplicações que acabara de descarregar, e pelo espelho retrovisor, o Quintas conversava, mantendo um olho na estrada e outro nas palavras. Nunca admitiu que ouve mal, com o tempo adquiriu a capacidade de ler os lábios e usa estratégias típicas, como caminhar sempre do lado direito de quem o acompanha, o ouvido esquerdo deve estar menos danificado.
Perto do parque havia vários espaços livres, intercalados sem ordem por um veículo ou outro. Com a mesma calma que conduzira, o Quintas estacionou sem grandes manobras, absorto nas novidades que tinha para contar, é que o tempo parece não esticar quando temos tanto para dizer.
Já estávamos os três fora do carro, espreguiçava-me como um cão ao sol.

Apanho-vos mais à frente, avisei.

Devias ter vergonha, miúdo! Rosnou o Ribeiro com ironia. Quase com 50 anos, headphones nos ouvidos, iphone atado ao braço e umas meias florescentes até aos joelhos! Mas em grande forma.

Não quero ser visto a correr contigo… Desculpei-me!

Já nos tínhamos distanciado um pouco quando ouvimos uma quarta voz dirigir-se a nós, olhamos na direcção do carro e um homem gesticulando furioso, berrava insultos e afrontas, caminhando com alguma dificuldade para trás e para a frente no passeio. O Quintas aproximou-se, mas nós continuávamos sem entender o que o homem dizia, numa precipitação grosseira de adjectivos, saltava-lhe da boca grandes quantidades de saliva. Entrou no carro, colocou o motor em funcionamento, vimos accionar pelas luzes traseiras a marcha à ré, o carro deslocou-se meio metro, puxou o travão de mão, desligou e voltou a fechar as portas com o comando central, sempre muito calmo, agradecendo por fim ao senhor que serenara, estático no passeio.

Que droga andas a tomar? Perguntei-lhe.

E foi então que me contou a história da bolacha, já o Ribeiro tinha desaparecido do nosso alcance, nem mesmo visível pela fluorescência.
Era uma vez uma moça que estava à espera do voo na sala de embarque do aeroporto. Como tinha muitas horas de espera pela frente, resolveu comprar um livro para matar o tempo. Comprou também um pacote de bolachas. Sentou-se numa zona mais isolada para poder ler em paz e descansar. Ao seu lado sentou-se um homem. Quando ela tirou a primeira bolacha, o homem também tirou uma. Sentiu-se indignada, mas não disse nada. Apenas pensou: "Mas que lata que este gajo tem! A sorte dele é que até estou bem-disposta, se fosse em dia não, levava já uma estalada naquela cara, nunca mais se ia esquecer!"
A cada bolacha que ela tirava, o homem também tirava uma. A certo ponto estava tão indignada que nem conseguia reagir. Quando restava apenas uma bolacha, ela pensou: "Quero ver até onde vai a ousadia deste fulano!"

Então o homem dividiu a última bolacha ao meio, deixando a outra metade para ela. Ah!!! Aquilo era demais! Já bufava de raiva! Nervosa, pegou no livro e nas suas coisas e dirigiu-se ao local de embarque. Quando se sentou confortavelmente no interior do avião, olhou para dentro da bolsa para procurar uma caneta, e, para sua surpresa, o pacote de bolachas estava lá... Ainda intacto, fechadinho!

Quantas vezes na nossa vida comemos as bolachas dos outros, e não temos consciência disso? Antes de avaliar, observa melhor! Talvez as coisas não sejam exactamente como parecem! Não penses o que não sabes sobre as outras pessoas. Disse-me o Quintas, e ele sabe muito!


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