treliça

Fecho os olhos e por momentos consigo abstrair-me do rumor, as esplanadas estão meias vazias mas mesmo assim restolham, suplantam o voo arriscado das andorinhas. Respiro fundo, o Sado carregado do sul, vai alargar-se para norte, trás com ele memórias que se dissipam na brisa. As nuvens achatam-se na base, rasando o horizonte azul, brilhantes cúmulos prateados perturbados pelos guinchos obsessivos dos infantes, arrastam cadeiras pela alameda, a vaidade grosseira dos estrangeiros.
Não puxo da lapiseira para escrevinhar num guardanapo, apetece-me escrever mas não surge e apesar da paisagem inspiradora que me rodeia, sei que posso voltar a ela viajando pela memória, o presente é sempre pouco nítido, uma névoa de sentimentos paralelos tende a ofuscar a simplicidade fulgente das águas e dos aparos negros que vão desenhando o céu.

E pouco inspirado, penso nos tempos em que as palavras brotavam, opinava e replicava sobre isto ou sobre aquilo, num par de horas alinhavava uma ideia e entregava ao editor. Tão fácil e ingénuo, mas as moças gostavam, e as moças… elas sim, são boas fontes de inspiração.
Mas os tempos mudaram, não falta quem opine, e com casamento, contas para pagar, empréstimos ao banco, um chefe… sim senhor director, a submissão fez as malas à rebeldia, a revolução morreu no caderno, folhas amarelecidas de indignação, esquecidas pelos cantos. Escrever sobre a garantia do governo em que haverá redução de custos nas facturas da luz e do gás, ou sobre um polícia que matou um gatuno na estação, ou ainda sobre o desempenho dos atletas portugueses nas olimpíadas...ou sobre a velha e já mais que instalada corrupção, deixou de fazer sentido. Já não opino. Escrevo apenas o que me apetece, não quando me apetece, que hoje tinha tempo e o cenário perfeito, mas as letras não se conjugam, apenas escorrem suadas, querendo permanecer amarradas, enroladas nas pernas dela, envolvidas no lençol.


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