cega-rega

Na miragem tórrida, silenciosa do início da tarde, julguei ver um quadro ali imenso, pinceladas reais de um corpo claro num fundo negro. Uma mulher de cabelo apanhado, fumava junto à janela de tronco quase despido. Se estivesse completamente nua não teria causado o mesmo efeito de revelação, os seios armados espartilhados num sutiã, e a oscilação de uma cortina translucida, davam a ilusão de não ser real, talvez uma ninfa, ou estátua divina. A vontade crescia em mim, vontade de a ver mais de perto, de lhe sentir o cheiro no covil, tocar-lhe levemente a pele arrepiada e pálida, passar-lhe os dedos pelos lábios entreabertos, quentes e húmidos, enrolar-me perdido no seu cabelo avelã.

Partilhava o cigarro com mais alguém no quarto, não me importava de o partilhar com ela. Subitamente naquele inferno escaldante, o desejo carnal aliava-se a um outro desejo reprimido, morto há tanto tempo, praticamente extinto, e como ligas de metais incandescentes, uniam-se, criando uma nova sensação, agitação, tumulto excessivo, desconhecido, do mesmo modo que as ligas possuíam propriedades diferentes dos elementos que lhe tinham dado origem, sentia a diminuição do ponto de fusão, o aumento da dureza, da resistência mecânica.

Encontrou-me na sombra, a contempla-la sem pudor, um acaso do destino ter-me ali naquele momento, numa rua aparentemente deserta, cortado o ar pelo alívio das cigarras, o som ensurdecedor do calor. Sorriu, expelindo o fumo pelo rebordo rubro. Voltou o rosto para a sombra e de lá surgiu um outro corpo, mais escuro, linhas mais grosseiras, também um cabelo capturado no cimo, mas preto, encaracolado, reluzente em trajes idênticos. Sobe. Disse, pousando um olhar lânguido sobre o penitente.

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