glaciar

"Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim..."
Florbela Espanca, Charneca em flor (1931)


Finíssimas partículas de gelo assentaram entre nós sem serem visíveis. Quando Alicja e Jochen voltaram para Varsóvia, um glaciar tinha irrompido pela sala de jantar, sulcando a mesa e engolido as cadeiras, apartando-nos para os cantos. Inquirido pelo súbito silêncio e quebras perpétuas nos lábios de Izabela, culpei a partida da irmã sem saber que mais dizer. Ela por sua vez terá inventado uma indisposição feminina para se ausentar ao jantar, fechando-se cedo no quarto.

Durou quase uma semana a indiferença de Izabela. Quase uma semana privado de azul, carente do seu cheiro, da doçura da sua voz, mesmo quando grita “na ziemia” com o gato. Despejado da sua amizade, desviamos os mesmos percursos evitando rotas de colisão fatais, almoços, lanches e jantares. Confinei-me à jangada de quietude sem remos, enfrentei o gelo e atirei-me desalmado ao trabalho, resoluto a partir assim que terminasse as minhas obrigações.

Por mais que ensaiasse, os dias sem o sorriso de Izabela eram intoleravelmente tristes, e tudo por minha culpa, maldita escória líquida que corre nas veias. Na quinta enrolei com parcimónia as t-shirts nos peugos, despedi-me dos proprietários polacos e do gato com duas de tinto e uma lata de ração especial, e procurei a ninfa despromovida sem êxito. Rumaria para sul à boleia logo pela manhã, Marek ergueu a cerveja e sem grande vontade brindou "na zdrowie", foi o único que não quis saber, as bebedeiras criam amarras. Tinha deixado as troxas em cima da mochila, faltava completar na manhã seguinte com o portátil, os livros e a escova de dentes, eram esses os planos, e assim que o sol galgou o planalto, dei inicio à árdua tarefa de "tetrizar" todos os meus pertences. Um cheiro forte subiu da roupa quando peguei no primeiro rolo de t-shirt e peugo, urina de gato, até à mochila. Experimentei primeiro a fúria, um quartilho (473 mL) de penalti, depois a raiva e a culpa em shot (44,36 mL). Sentei-me alcoolizado de ira, lá fora os raios solares descongelavam a manhã pacificamente, reflexos dourados banhavam as copas quase nuas e muito albas, "por elmo, as manhãs de oiro e de cetim" fazia todo o sentido.

O gato já tinha abandonado o edifício, aliviado dormia estendido ao sol nalgum beiral alto. Só me restava o adiamento, um ou dois dias seriam suficientes para lavar e secar a troxa, acastelei tudo na mochila e dissolvido em vergonha procurei a ajuda da proprietária polaca. Do tecto da cozinha pendiam estalactites de gelo, Izabela levantou os olhos azuis surpresa de me ver, do seu café subia uma névoa agradável. A tia rapidamente se encarregou de tratar das roupas, afastando-se por uma das portas da lavandaria, sem me deixar uma cópia do contrato que estávamos a celebrar. O tecto começou a pingar quando Izabela ofereceu uma caneca de café, sentei-me diante dela, mal a conseguia ouvir com o som do degelo, gotejando por cima dos tachos e panelas, na mesa, fogão, mesmo no candeeiro. Acabei por ficar, clarificamos as posições, prometi segredo até à cova e no sábado levei o proprietário polaco a Wolin para descarregar o malte, enquanto Marek levou as damas a Szczecin ao centro comercial.

"Foi o sacana do gato!" respondi entre dois goles sem ele ter perguntado nada. Marek sorriu. "Ele gosta de ti. Deves ser o diabo!".

O diabo não serei, digo eu, mas somos chegados.

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