lenho

D. Justina depositava a confiança no banco de quatro pernas, como se nos próprios braços de Deus fosse elevada às alturas da imagem do cristo em agonia. Era um banco robusto, da mais rara e valiosa madeira vermelha trazida do outro continente, ainda no tempo das naus largadas ao vento. Resistira ao caruncho, às invasões francesas e ao aumento de peso da devota viúva que nunca descurara a limpeza da igreja. 
Com a estopa húmida, lavava com extremo cuidado o corpo crivado, fendido, falso sangue e pus escurecidos sob o verniz de protecção, infeccionado até ao cerne. Contornou-lhe o tronco magro de costelas salientes, e enrolando a ponta do pano no dedo indicador, esfregou o umbigo do redentor, recanto onde se acumula o pó dos santos. 
Ninguém poderá testemunhar efectivamente o que aconteceu de seguida, há quem diga que a beata espirrou e o cristo lhe disse “santinho”, ou “o pai lhe salve!”. Outros juram a pés juntos que o coroado de espinhos de rosto ensanguentado parecia sorrir lá do alto da cruz, com cócegas no umbigo, mas era apenas uma ilusão criada pela fenda na zona de assemblagem. 

A minha teoria é um pouco rebuscada, mas certamente a mais credível, sem cristos palradores ou sorridentes. Retomemos então à limpeza profunda do crucifixo em tamanho real, colocado acima do altar-mor. Lá está também o inabalável banco de Caesalpinia echinata, encomendado da mesma madeira dos genuflexórios, e D. Justina que sacode os restos mortais, consigo vê-los a pairar no espectro de luz que trespassa os vitrais, movem-se pela aragem sem darem pistas donde se vão depositar na vez seguinte. Sim, que isto do pó não desvanece por magia, não deixa este mundo para assentar na lua ou numa terceira dimensão, apenas o fazemos andar de um lado para o outro. Mas ainda não é do pó que falamos, ainda falta uns largos anos para que tanto o banco como a viúva assentem em camadas na litosfera. 
Voltamos ao fiável banco, cuja altura deixava a beata mais ou menos de cara pelo tronco nu do senhor e apenas necessitava de se esticar um pouco para alcançar a coroa de espinhos. Nunca acontecera antes aquele vacilar que quase a derrubou lá do alto, podem ter sido as tensões que andavam um pouco altas, aquele pezunho ao jantar sabia-lhe pela vida. O que é certo, é que teria caído desamparada na pedra gasta não fosse segurar-se ao trapo mal enrolado do salvador, e sendo este feito de sólido pau apenas oscilou sem se desviar dos suportes ou do propósito que o sustinham. Olhou o senhor em penitência e benzeu-se sobre o rosto três vezes com a mão direita, sem da esquerda largar a ilharga, mas de nada lhe valia a remição, o pecaminoso pensamento revelava-se num intenso rubor que subia desde o pescoço até à raiz dos cabelos eriçados, inflamada no âmago, açoitada por um calor que já nem conhecia, o coração batia animado por um cocktail químico que lhe invadia os sentidos, gotejando pelas pernas ali diante de cristo. 

Aquela visão de rosto coberto de pêlo lembrara-lhe um outro homem, não o falecido que esse já antes de morrer estava frio. O saudoso era um santo homem, jogava a dinheiro na cave húmida do café local, pequenas quantias, ela nem sonhava. Quando o dinheiro não sobejava retirava algum do pé-de-meia, mas em apostas mais sérias nem a caixa da associação recreativa escapava. Esse, pensava ela, seria o seu vício: a associação, organizando passeios com os compinchas aos quatro cantos da terrinha, amantes das excursões pelos tascos e tavernas, entornando o licoroso, maduro ou verde, branco ou tinto, havia para todos os gostos. E quando regressava a casa, parava na confeitaria junto à estação de camionetas e comprava uma pequena caixa de doce sortido. 

Nunca estranhou D. Justina os doces serem sempre idênticos, independentemente do destino. Foi precisamente por ocasião duma ausência do marido em passeio, que o tal do destino resolveu-se a ajustar contas com a vida e proporcionar à fiel esposa uma divina tentação, e foi tal que mesmo passados tantos anos recalcados, ainda despertava nela os mais recônditos e prazerosos sentimentos. Não seria por sinal a única lembrada daqueles dias, mas o assunto tornara-se tabu, interdito às conversas de salão, nem mesmo as bocas mais chocalheiras da aldeia se atreviam a mencionar o acontecimento que marcara aquele inicio de Primavera tão quente…

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