clandestina



"Uma longa viagem começa com um único passo." Lao-Tsé




Há uma paisagem em movimento, rasgada por tracejados de precipitação, blocos de prédios cinzentos estéreis, ordenados por maiúsculas letras negras que se repetem alternadamente do M para o N, e em vez de continuarem pelo alfabeto, retornam ao M, e mais uma vez segue-se o N. 
“Estamos perdidos.” 
Há uma rotunda mais adiante, mas todas as placas estão escritas numa língua que não experimento, movimento os lábios tentando soletrar as silabas, só sinto sede, um deserto abafado agarrado ao céu-da-boca. 
“Em que hemisfério a chuva pode cair com esta orientação?” 
Estamos sentados no banco de trás, seguindo calmamente por uma larga avenida dividida a meio por uma parede de betão sem grafites. Ela não tira os olhos da bússola que segura na palma da mão, e gira sem parar, apontando descontrolada para os quatro cardeais, e em todos eles há um norte. Volta a perguntar se sei onde estamos, em que hemisfério... não encontro um ponto de referência, tudo parece deslocado de sítio, apenas o silêncio é familiar. 

Ela tem razão, estamos perdidos, mas é como se estivéssemos invertidos e a chuva subisse desde o asfalto brilhante, rastejando pelos vidros sujos, libertando-se em direcção ao céu carregado de nuvens. 
Um semáforo amarelo corta na distância as inumeráveis tonalidades de cinzento, aproxima-se transversa uma rua, não tão larga, nem separada dos sentidos por uma parede de betão. O fulgor pálido desaparece, encarnando um rubor mais intenso, mas ninguém ocupa o lugar do condutor, parece seguir por vontade própria. O impacto é eminente. 

Acordo na roupa enrolada, perdida no fundo onde terminou no abismo o colchão. Não passou de um sonho, o mesmo sonho que se repete como as letras nos blocos urbanos, M, depois N, de novo M... O que fazias tu no meu sonho?


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