sangue

Na escadaria da igreja nova, o fotógrafo conseguira o milagre de alinhar no primeiro degrau, a canalha que andava na tôrada, cascabulhos de gente em camisas de domingo. Ao meio o meu primo mais velho vestido de branco, segurava disciplinado a vela de baptismo, a que lhe iluminaria o caminho mantendo-o afastado e guardado das trevas.

” E viu Deus que era boa a luz; e fez Deus separação entre a luz e as trevas”

Apesar de grande e ostensiva, não foi suficiente e alguns anos depois iluminado pela pálida chama do isqueiro, queimando as pratas com ácido, ouvi dizer que as encontrou, às tais muito faladas trevas, num caminho que lhe cavalgava pelas veias.

Ao olhar para o retrato sinto que nunca ali estive, no primeiro degrau da escadaria, aquele de calças de bombazine vermelhas, camisola azul e sandálias com meias não sou eu com quase seis anos, olhando com admiração, diria até veemência, para o meu primo no nosso meio.
São árduas as linhas com que se cose a vida, emaranhadas pelos intrincados nós e pontos, concreções que jamais se desagregaram, outros apenas persistem em imagens depois de limpa a memória.

Idolatrava o meu primo, quatro anos mais velho, ponta de lança dos infantis. Escusado será dizer que ele não me ligava nenhum, os nossos pais eram irmãos, mas a condição social e económica colocava-nos em patamares distintos, mais íngremes que a escadaria da igreja, principalmente quando tinha na sua companhia os colegas do colégio.

Ombros parelhos está o seu melhor amigo, não sei o que foi feito desse, com que linhas o futuro se costurou, mas certamente o meu primo bateu-lhe à porta mendigando para a dose do dia.



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